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#11 Serra da Estrela

O INÍCIO DE TODAS AS COISAS

Da mais pura rebeldia nasce o mais puro ato de construção.

Os olhos do pequeno Renato decidiram mover-se mesmo contra a vontade de todo o resto do seu corpo. Era tarde, ou pelo menos assim parecia: aquele quarto, localizado num sítio demasiado incógnito para ser conhecido, era banhado por um azul-escuro denso mas doce. Já ele sentia estar em pleno mar, qual pirata à procura de encrencas, confusões e belas donzelas em perigo. O corpo não se moveu de imediato, havia tempo. No meio de todo aquele silêncio, o berço de madeira agitava-se sozinho. Causava um som dispersante e hipnotizador... até aparecer o mar, o áspero e violento mar. Tentava de forma desesperada deitar abaixo aquela embarcação que o seu pai havia construído como prenda pelo seu próprio nascimento. O pequeno berço era agora o "Cavalo Fumegante", o navio pirata mais temível e veloz de todo aquele quarto. Contavam-se histórias por entre os brinquedos, de que era o único velejeiro capaz de se aproximar da janela e suportar um ataque de três tubarões geneticamente modificados com dentes de aço e escamas de mármore.
O candeeiro do teto pintava a parede com sombras de figuras ainda demasiado complexas para serem decifradas. Não lhe suscitavam qualquer interesse, na verdade nem sabia porque lá estavam. Se dependesse de si, aquele quarto não possuiria qualquer tipo de luz artificial... assim nada existiria para rivalizar com a lua.
O choque surgiu de forma inesperada, o Cavalo Fumegante havia atracado em terra desconhecida. É dever do capitão e da embarcação explorar os novos territórios... e o pequeno Renato ainda tinha tanto a provar.
Apoiou as mãos no topo da embarcação e içou o corpo na vertical. Os pedaços de madeira tremiam, mas o seu equilíbrio era exemplar. Uma vez no exterior da embarcação, saltou de brinquedo em brinquedo até à enorme porta amarela do outro lado da parede. Rezava a lenda que só por lá passavam os mais bravos corações do mundo.

Pôs meio pé no corredor e olhou atentamente para os dois lados enquanto apoiava o braço direito na calha da porta. Respirou fundo e caminhou com pressa, mas sem saber para onde ir. O suave tecido da carpete aconchegava os seus pés de menino descalços e nervosos. Conseguia ouvir por cima de si passos e sons emaranhados, mas sentia-se seguro, via-se no piso inferior longe de tais vis e misteriosas criaturas.
A sala branca prendeu imediatamente a sua atenção. Nunca havia visto tanta veemência de uma cor no seu espectro... e quando lá entrou sentiu o espaço maior do que a própria vida. Envolveu-se numa ânsia incontornável de tocar em tudo. Começou por desligar e ligar as luzes por engano, repetiu o processo vezes sem conta até acabar por as deixar ligadas. O tacho alto, cuja fumaça o fazia lembrar um importante acampamento índio que havia visto no Fievel, Um Sonho Americano, tornou-se de forma imediata num alvo a abater.
Trepou ao banco que estava junto ao fogão e subiu à banca principal. Derrubou colheres, garfos, facas, raladores, pinças, batedores e espátulas. Espreitou para o interior do tacho e viu as borbulhas calorosas que, uma vez por outra, rebentavam e lançavam bem alto gotas de água que se evaporavam no ar como que por magia. Tentou tocar-lhe e aprendeu nesse preciso momento que não o devia ter feito. Com a mão vermelha junto ao peito, gritava para dentro enquanto as primeiras lágrimas começavam uma incrível jornada pelo seu rosto abaixo. Por fim gritou por fora, com toda a força que tinha nos seus novos e saudáveis pulmões. Armou o pé para trás com raiva enquanto olhava para aquele tacho maléfico e insensível. Pensou que se o pai estivesse ali nada daquilo se teria passado. A mãe apareceu, ainda foi a tempo de gritar. O menino empurrou o tacho com a sopa a ferver para o vazio com um pontapé seco. O som terminou e tudo ficou em silêncio.


E tudo nasceu de um prato de sopa.

O tacho deu pelo menos duas voltas sobre si mesmo durante o seu curto voo, soltando um ou dois pedaços de legumes pelo caminho. Atingiu a tijoleira do chão da cozinha com violência e explodiu, repartindo-se numa quantidade incontável de partículas que se expandiram para todo o lado. Percebera que não era infinito nem eterno, nem o tacho nem a sopa. O espaço desapareceu por completo: a tijoleira, a banca, o fogão... apenas existia o vácuo e um vazio total difícil de explicar por palavras.
O ambiente quente e denso permitiu que de partículas de gluons se formassem seres brilhantes e efervescentes: os quarks. Rodaram entre si no meio do nada, deixando um traço verde fluorescente que recordava os seus últimos movimentos... como um fantasma que os perseguiria para sempre, sem nunca na realidade os conseguir apanhar. Seria um espetáculo e tanto caso algum ser vivo o pudesse experienciar.
As danças dos quarks, porém tornavam-se ferozes sempre que encontravam um gluon, e tudo o que é feroz ou consome ou acaba por ser consumido. Lutaram entre si habilmente até à morte, como dois cavaleiros medievais, caso contrário seria renegar a sua própria natureza e propósito. Assim o foram fazendo, de forma exagerada e repetitiva, criando de forma consecutiva vários novos pares de quarks e gluons. O vazio parecia agora o palco que havia sido reservado para o maior fogo-de-artifício do mundo. Havia razoes para tal, a festa estava completamente justificada. A matéria e a energia não eram apenas teoricamente equivalentes, não tinham qualquer tipo de distinção. Eram uma da outra, a matéria da antimatéria.
Revele-se um homem que acredite num final harmonioso para tão estranha coexistência e eu revelo-vos um louco. Quando a faísca terminou e o fogo cessou de abrilhantar o vácuo, a matéria venceu a antimatéria em larga escala. Do seio de tamanha resolução gerou-se a gravidade, a força eletromagnética e a nuclear. Aquele pequeno espaço que havia explodido ao tocar na tijoleira da agora inexistente cozinha havia-se entendido para um bilião de quilómetros de diâmetro. A temperatura desceu e os quarks, na ausência da sua principal fonte de energia que era o calor, morreram lentamente. A bonita dança havia terminado e não se ouviam palmas. Deixaram-se levar numa queda inconsciente pelos mistérios do vácuo, sem conhecimento prévio do seu destino. O seu corpo fora-se decompondo ao longo da queda, dando lugar a hadrons que por si deram lugar a protões e neutrões.

Um segundo havia passado desde o pontapé seco do menino no tacho.

O espaço havia crescido agora para um bilião de quilómetros e tornara-se frio o suficiente para a formação de hidrogénio: o primeiro átomo a surgir no vácuo. Podia-se dizer que de certa forma, a sopa agora estava ali: um misto invejável de partículas e energia sempre em movimento.
Arrefeceu ainda mais e o vácuo continuava negro e sombrio. Viu a sua escuridão ser desafiada pelo equinócio do tempo com a formação das estrelas e das galáxias. Rendeu-se à maravilha de presenciar um milagre, de ver um novo universo nascer… de uma simples panela de sopa. Fez-se luz.
#11 Serra da Estrela
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